“1. Isto é para quando você vier. É preciso estar preparado. Alguém terá que preveni-lo. Vai entrar numa terra em que a verdade e a mentira não têm mais os sentidos que o trouxeram até aqui. Pergunte aos índios. Qualquer coisa. O que primeiro lhe passar pela cabeça. E amanhã, ao acordar, faça de novo a mesma pergunta. E depois de amanhã, mais uma vez. Sempre a mesma pergunta. E a cada dia receberá uma resposta diferente. A verdade está perdida entre todas as contradições e os disparates.”
Nove noites
A narrativa organiza-se por 19 capítulos numerados em cardinal, ora em itálico ora em romana, marcando-se narradores distintos, um do presente e um do passado.
O fato gatilho para a narrativa é um fato verídico: o antropólogo americano Buell Quain suicidou-se em 1939, aos 27 anos, poucos dias após deixar uma aldeia indígena krahô no interior do Brasil.
No fim dos anos 60, um menino de seis anos de idade, contrariado, frequenta a região do Xingu, onde o pai comprou uma fazenda.
Mais de 30 anos depois, o menino se transformou num escritor empenhado em reconstruir a trajetória de Quain e, por consequência, passagens da própria infância.
Desse fato gatilho, dois momentos temporais se desenvolvem: um autor-narrador, provavelmente um jornalista, que levanta dados documentais acerca desse personagem verídico para escrever um suposto romance. Essa pesquisa é feita 62 anos depois, ou seja, no presente histórico da publicação do livro, de forma metódica e apurada, por meio de cartas, de viagens, de documentos, de fotos, de testemunhos e de relatos, na tentativa de revelar as circunstâncias e as motivações verdadeiras da morte do antropólogo.
Ao mesmo tempo, esse narrador do presente se apresenta trazendo fatos biográficos do próprio autor: a infância no Xingu, as fazendas do pai, a relação conflituosa com esse mesmo pai, o período morando fora do país.
Já, em um segundo momento narrado em itálico no corpo do romance, paralelamente, há um narrador ficcional, o engenheiro Manoel Perna, que convive com Quain em Carolina, principalmente por nove noites que antecedem o suicídio dentre os índios, encerrando sua estada no Brasil (daí o título do livro). O texto desse narrador é uma espécie de carta-testamento, cujo destinatário particular seria um antigo amante de Quain, que estaria no centro da causa de seu suicídio e cuja chegada é esperada para breve.
Esse relato é alusivo, sinuoso e remete com estranha intimidade a fatos que não são conhecidos ou que são apenas imaginados, o que produz um efeito de cumplicidade solene e tácita (e, em seus maus momentos, sentenciosa e kitsch) entre o narrador e o destinatário ausente.
E produz não apenas uma cumplicidade entre eles. O destinatário secreto, referido pelo engenheiro como um simples "você", produz o tipo de ambiguidade insolúvel, própria dos termos da linguagem que não têm sentido fixo, mas sim dependente do conhecimento da posição de quem fala, do referente. Assim, esse “você”, em maior ou menor medida, é o leitor dessa carta-testamento também.
Essa narrativa tenta preencher a partir da realidade aquilo que lhe falta. Portanto, a partir das lacunas reais o romance, a ficção, toma forma, e dá, em maior ou menor medida, ao leitor o que ele precisa saber para entender (?) o que acontece e porque.
As duas narrativas se entrelaçam, e à medida em que o romance avança, deixando-nos cada vez mais confusos sobre o que é ou não real. Essas linhas se cruzam numa história traiçoeira, com mais pontos falsos que pontos de apoio. A história de Quain é verdadeira, mas e o resto?
Tal estratégia compõe um gênero híbrido que aponta para a autoficção e a metaficção, criando-se dados inverídicos a partir de pistas verdadeiras da vida do antropólogo, em um texto a meio do caminho entre o romance-reportagem, romance-biografia e o romance policial.