Acompanhamos com interesse sempre renovado o desenvolvimento das investigações do narrador; ao mesmo tempo, a sua arte está em nos fazer frequentemente inseguros com relação ao rumo que o livro vai tomando. "Nove Noites" explora com maestria a sensação de estarmos sendo traídos, no exato momento em que parecemos nos aproximar da raiz, da verdadeira origem, da fonte de nossas inquietações. Essa sensação pode ser associada ao tema da paternidade e da memória individual, mas também à ideia de Comte, citada por Carvalho, sobre o governo, o domínio que os mortos exercem sobre os vivos.
No que é ao mesmo tempo ritual de sepultamento e cerimônia de exumação, o texto de "Nove Noites" passa pelos mais diversos estratos da memória e do imaginário. Seria impertinência discutir se é romance esse vaivém entre realidade e ficção; merece, isso sim, o nome de literatura.
(Marcelo Coelho)
Literatura contemporânea- 2002;
Início do século XXI;
A questão da violência;
Elementos biográficos X ficcionais;
Literatura histórica (?)
Gênero: Romance;
Foco narrativo: narrativa em 1ª pessoa//alternância entre dois narradores em 1ª pessoa;
Tempo e estrutura narrativa: não linear/não cronológica/ presença de flashbacks//alternância entre dois tempos narrativos, presente e passado;
Espaço: vários (Carolina, TO, tribo Krahô, Xingu, São Paulo, Rio de Janeiro, NYC;
Linguagem: coloquial/ direta/jornalística/biográfica.
O romance se constrói em dois eixos narrativos que se intercalam capítulo a capítulo, ambos com foco narrativo em 1ª pessoa.
Temos a narrativa do passado, a carta testamento de Manoel Perna, e a narrativa do presente, acompanhamos a pesquisa e a busca obcecada do jornalista, em 2001, por respostas sobre a vida e o suicídio de Buell Quain.
A carta testamento de Perna, marcada em itálico no corpo do livro é ficcional, ela nunca existiu. Entretanto, ela traz muitas informações factuais da chegada e vivência do antropólogo em Carolina (TO) e com os Krahô. Na narrativa do presente, por sua vez, faz com que acompanhemos a pesquisa do jornalista sem nome que teoricamente escreverá um romance sobre o antropólogo. Da mesma forma, a partir da metade do livro, começamos a ter outras informações de outra biografia: a do próprio narrador. Ainda, muitos aspectos da vida desse narrador do presente coincidem com fatos da biografia do próprio autor, Bernardo Carvalho.
Assim, a sobreposição desses dois tempos cria uma desmontagem das histórias biográficas, verídicas, seja do antropólogo (passado) como do próprio narrador-autor, somando fatos do presente a flashbacks da própria infância desse jornalista. Os dois tempos se complementam, preenchem lacunas entre si, mas talvez não todas da história de Quain.
O relato do presente, que busca a história de forma precisa, jornalística, policialesca, ao menos nos momentos em que se refere à pesquisa sobre Quain, faz uso de uma linguagem bastante objetiva. Esse relato do presente ainda viaja temporalmente a outros momentos do passado, nos anos 60/70 (infância do narrador-jornalista) e nos anos 90 (doença e morte do pai), amarrando a história do narrador à historia “biografada” de Quain, por um interesse que só vamos entender de onde vem no último capítulo do livro, quando ele descreve a doença e morte do pai. Esse relato sse vale desse estilo bastante contemporâneo, criando uma certa urgência no leitor, entregando-lhe muito pouco das respostas, aumentando capítulo a capítulo a tensão e o mistério. O que nos motiva, além dos próprios mistérios da vida de Buell Quain, é o interesse absoluto, obssessivo e inexplicável do narrador pelo antropólogo.
Em oposição, há o relato do passado, de Manoel Perna, que assume um tom confessional, angustiado, constrangido, preocupado com um certo “estilo culto” que coubesse aos anos 40, que se quer verdadeiro, como carta-testamento a um “você” que chegará em breve. A esse você, Perna vai e volta, como se ensaiando chegar a uma questão muito íntima e pessoal que ele mesmo precisasse confessar sobre Quain. Mas esse é o relato que, historicamente, não existe, é todo criação ficcional e, ainda assim, é o relato chave, o fio narrativo, a “prova” ficcional definitiva do que aconteceu com Quain.
Em ambos relatos, temos a repetição de um epíteto, um refrão, uma sentença guia, que ao mesmo tempo ajudam e despistam na leitura:
Isso é pra quando você vier (passado) X Ninguém nunca me perguntou (presente)
Ao longo da leitura, vamos percebendo que uma das questões mais relevantes e ambíguas sobre o antropólogo é a questão da sexualidade dele. Principalmente pelo contexto em que viveu, nos anos 30, quando o país estava sob a vigência do Estado Novo, por ser um estrangeiro e ainda por querer estar no meio dos índios, haveria uma série de tabus envolvendo a possível homossexualidade de Buell Quain. Lembrando que até os anos de 1990, a homossexualidade era considerada como uma doença...
Assim, Quain havia declarado que era casado para o Serviço de Proteção ao Índio, entretanto, não havia nenhuma mulher para quem ele endereçou suas cartas suicídas. Da mesma forma, a busca do narrador do presente por essa esposa, bem como o tom de contrangimento de Perna, ao relatar ao “você” o porquê de ele não ter enviado a carta, só se “explicam” com os relatos de Quain e com o companheiro de UTI do pai do jornalista.
Como a ambiguidade da figura de Quain, no que tange a sexualidade dele, interfere na resolução do que de fato aconteceu?
A metaliteratura aparece com a resposta quase automática do narrador do presente, justificando o interesse na história de Buell: escrever um livro, escrever um romance. Há ainda o entrelaçamento da vida desse “biógrafo” (viagens ao Xingu, a estadia com os krahô, a velhice trágica seguida da morte do pai) com os desdobramentos da pesquisa sobre o biografado (capítulo 19: “A ficção começou no dia em que botei os pés nos Estados Unidos.” p.142). Ao mesmo tempo, o grande questionamento a cerca do que é ou não verdade do que ele narra, principalmente com relação à história do fotógrafo, criam o tempo todo uma desconfiança, uma tensão lúdica e intensa sobre os limites da realidade e da ficção.
Da mesma forma, o expediente de ficcionalizar a história, escrever um romance que conversa com fatos reais, mas não tem um compromisso absoluto com a verdade, aponta para uma supremacia do inverídico/fictício em detrimento ao documental/real/histórico, já que inverte o propósito comum da pesquisa em extrair dados fundamentados e coerentes de determinado assunto, criando-se possibilidades que não correspondem à verdade histórica, processo comumente usado em romances históricos. Assim, Bernardo Carvalho logra, engana, cria um embate entre ficção e realidade de modo a misturar as perspectivas e as conclusões documentais, deslegitimando-as como fontes incontestáveis de conhecimento.
É justamente nessa tensão que os limites da realidade do etnógrafo (o que é realmente possível? O que de fato aconteceu? E o fotógrafo?) começam a sobreporem-se à percepção e à suposta vivência do narrador-pesquisador, que passa a projetar-se na figura de Buell Quain, em um jogo de alteridades transformadas – pela ficção, o que torna o processo mais engenhoso – de sorte a criar uma identificação tão intensa entre o narrador e o etnólogo, que àquele torna-se uma espécie de “outro” desse, apropriando-se da cosmovisão de Quain, deixando entrever todas as suas experiências, angústias e perplexidades, inclusive sobre a sua infância.
Abaixo estão dois links que direcionam para os vídeos de análise. Eles se dividem e se debruçam sobre os dois narradores, explicando de forma linear, a dinâmica dos tempos que aparecem alternados e sobrepostos no romance. É mais para auxiliar a leitura e o que prestar atenção em cada capítulo. Entretanto, a leitura do romance, misturando e tecendo os tempos é absolutamente deliciosa e não deve ser substituída! =)